07 abril, 2008

Quarta-feira de cinzas

A chuva que caía fina nos trilhos do bonde lavava as ladeiras e os corpos. Olhares prazerosamente cansados faziam belas as moças que ali passavam. Centenas de chicletes pisoteados pintavam o chão de bolinhas. Mochilas se acostumavam nas costas no caminho de volta pra casa. Não se falava alto, eram apenas sussurros o que se ouvia naquela tarde cinzenta.
Findava-se outro carnaval. As fantasias molhadas agora já não tinham a leveza dos sonhos. Cada qual continuando sua vidinha e um ou outro ainda assobiava. O samba dava lugar ao silêncio, como se pedíssemos todos um intervalo entre o riso e o choro. Já não era mais festa, já não podíamos tudo. E mesmo assim um coração inquieto permanecia no compasso acelerado da folia.
Era um coração sofrido, desgastado, cascudo. Daqueles que não sentem mais arrepios, que não se desmancham por qualquer bobagem. Um coração distante e frio, numa mulher calejada e sôfrega. Descompromissadamente, este coração de repente parou. Disse que não ia mais ficar ali, batendo em vão, ecoando rompimentos, desaprovando felicidades. Disse isso e parou. Parou no meio da batucada da noite de carnaval. Ficou tão quieto que ninguém podia percebê-lo no meio daquela euforia. E foi parado que ele entendeu a melodia.
Na quietude intolerante do verbo amar, olhou ao redor e, como se fosse mágica, percebeu um abraço e um reencontro. Mesmo sem querer, já não era estático. Pulsava generoso naquele peito ressabiado. Tudo se esquentava novamente. Era como se o sol saísse à noite. Era de beleza singular como o romper das ondas. Purpurinava alegrias, exorcizava contradições, remexia passado.
E a moça daquele coração já não era pálida. De novo, sentia. Foi então que a vi, naquela manhã de cinzas, a chuva molhando seu vestido e ela sorrindo. De pernas bambas, lembrava da poesia de ontem e sentia arrepios. Quase caía de torpor. Era um dia de sins, era um dia de mais.

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